segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Nove Músicas


Era um quarto alugado, em um hotel barato. Meu tio, um caça-talentos das cidades do Sul, falara-me sobre um bluesman que costumava tocar nas jook joints do delta. Convenci-o a me levar àquela sessão.

Ele chegou, antes do crepúsculo. Trazia seu violão, surrado, quase imprestável. Apertou a mão do meu tio e me lançou um olhar enigmático.

— Trouxe meu sobrinho, para conhecer seu blues! — meu tio apontou para um uma bag sobre a mesa — Use aquele instrumento!

Ele sorriu. Apertou minha mão com força e foi ter com violão que estava dentro da bag. Era um Stella.

— Um belo violão, chefe!

Tudo era marcado pelo improviso. O microfone fora instalado em um canto do quarto. Meu tio dizia que aquele tipo de gravação captava toda a alma do músico.

Ele bebeu de uma garrafa de whisky de milho, cortesia da gravadora. Afinou o instrumento e se sentou de frente ao microfone. Brincou alguns acordes, no que pude perceber um pouco da sua técnica apurada. O técnico de som, um homem gordo, o instruiu sobre como proceder.

— Quando a luz azul acender, você começa...

Não me recordo de muitos detalhes daquela sessão. Mas jamais me esquecerei da maneira contundente, como aquela música tomou conta da minha cabeça. Sua voz rouca tinha algo de lascívia, acompanhada por aqueles acordes sensuais. A mão direita dedilhava freneticamente pelo aço daquelas cordas, enquanto a esquerda, ágil, percorria o braço do Stella como uma aranha.

— Nunca ouvi nada parecido! - meu tio olhou para o técnico, sorrindo - Vamos ganhar algum dinheiro com esses blues!

A sessão durou boa parte da noite. Ele bebia algumas doses entre uma e outra gravação. E sua voz parecia ficar melhor a cada dose.

Gravou nove canções, algumas tradicionais, mas a maioria de autoria própria. Não soube quanto ele recebeu, mas foi uma ninharia, segundo meu tio me confidenciou.

Ao terminar, ele não escondia uma expressão de contentamento. Sorriu-me antes de ir. E sumiu na noite.

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Entre Ébrios e Blues (Jook Joint)

 

 
Robert Crumb


Lembro-me que era uma construção rústica, feita de madeira. Um lugar onde as pessoas se amontoavam para fumar, beber e ouvir o blues. Havia conversas ruidosas e ébrios desgraçados, assim como mulheres faceiras, cujas curvas atraíam olhares e confusões. A bebida servida era o hootch, um destilado clandestino feito de milho, servido em canecas toscas. Horrível, mas uma boa opção para aqueles tempos da lei.

Ficava às margens de uma estrada lamacenta, onde, não raro, o Rio Yazoo lançava suas águas com alguma rebeldia. Era um lugar agitado, algumas pessoas saiam de lá com a cabeça rachada, literalmente. Mas diziam ser o melhor bar do Delta, para se ouvir aquela música e beber alguma coisa destilada.

Ele subiu no pequeno palco, com o velho violão. Era um homem do blues, sobre o qual não se sabia muito. Chamavam-no simplesmente de “Relâmpago”, pois diziam que suas mãos eram rápidas. Trajava um terno garboso, mas barato e um chapéu preto, cuja aba lhe emprestava alguma aura misteriosa. Fumava copiosamente.

Algum silêncio se fez, quando ele deitou o violão no colo. Apagou o cigarro e sorriu, ajeitando a aba do chapéu. Suas mãos, então, começaram a dançar com desenvoltura pelo instrumento. Alguns acordes soaram, sujos. Lascivos como as curvas do violão.

Sua voz ganhou vida. Uma voz enigmática, ponteada por falsetes sensuais e gritos guturais. Lembro-me que era uma música que falava sobre uma mulher que mais se parecia com o capeta. Aquele foi apenas o primeiro de muitos outros blues.

A noite avançava, sorrateira. As pessoas se sacudiam, com rebuliço. Algumas gritavam obscenidades, bêbadas ou não. Mulheres ensaiavam danças, fulminadas por olhares libertinos.

Hipnotizado, sentia-me levado pelos versos e acordes daquelas músicas malditas. Porém, era sagrado, o caminho que minha alma percorria pelas vias tortas daqueles blues.

Passava das tantas da madrugada, quando ele parou de tocar. E desapareceu entre as pessoas. Nunca mais ouviria falar dele, mas jamais esqueceria aquela música.

sábado, 11 de setembro de 2021

Algo Sobre Blues



O relógio avançava e uma luz intrusa adentrava o quarto, sorrateira, pela janela aberta. Meus olhos cansados, fixos no teto. Era madrugada e uma solidão insólita preenchia todo o vazio daquele quarto. Vencido pela insônia, sentei-me na cama, sobre um lençol amarrotado, quente e úmido de suor. Olhei pela janela e a violenta cidade estava à vista. Observei-a por instantes, com certa indiferença.

Ao lado da cama, o violão surrado. À meia luz, contemplei-o. Inevitavelmente, o violão, ao meu alcance. “Que diabos!”. Estendi uma mão e, segurando o braço do velho instrumento, senti suas cordas frias, de aço. Meus dedos as afagaram como se passeassem pelo corpo de uma mulher. Sem resistir, puxei-o para junto de meu peito.

Lembro-me que havia um velho LP do B.B. King em qualquer canto daquele quarto. Além disso, um misto de sentimentos, indecifráveis. Naturalmente, comecei minha odisseia pelos calabouços de minha alma.

A mente me ditava alguns acordes. “Em algum quarto escuro, ela deve estar. Entre vinhos e rosas Inebriada e feliz...”, esse foi um dos muitos pensamentos que me vieram, desconexos. Quando dei por mim, toda aquela solidão ganhou forma, palpável, audível. Um blues, cujas notas ecoaram pelo quarto e saíram pela janela, ganhando a noite. Ganhando o mundo.

Lá fora, a cidade, violenta. Não me é possível especificar o alcance daquela maldita canção. Lembro-me somente da luz intrusa adentrando pela janela. Uma luz pálida, feia. E minha voz, acompanhada por aqueles acordes profanos, ressoando pelos quatro cantos daquela noite. Sobretudo, pelos quatro cantos da minha alma.




terça-feira, 31 de agosto de 2021

O Trato

A description... 

  Arte: Robert Crumb
 

 

Era meia-noite.


— Você tem um belo violão! — ele me disse. Tinha modos polidos e voz calma. Usava um terno branco e sapatos engraxados.


— É meu único bem... além da alma... — a noite era completa e uma lua inchada iluminava a encruzilhada deserta. Quatro caminhos partiam em linha reta daquele ponto e se perdiam nas entranhas da noite. Lembro-me de um vento frio, levantando poeira e levando algum aroma de medo ao meu âmago.


Ele me dirigiu um sorriso sedutor, sabia que eu iria até o fim. A aba de seu belo chapéu não permitia que eu contemplasse seus olhos, mas, se bem me lembro, eles brilhavam em um tom rubro.


— Você quer tocar o blues, garoto?


— É tudo que quero.


— Pagará o preço?


Fiz um gesto afirmativo com a cabeça e nos sentamos sobre uma pedra. Ofereci-lhe o violão. 


Ele afinava as cordas, enquanto o observava, hipnotizado. Uma atmosfera opressora penetrava meus pulmões.


Então ele tocou o blues. Eram acordes, como jamais havia ouvido. E eram mãos ágeis, as que percorriam o instrumento.


— Bom negócio! — ele me entregou o instumento e, sem anunciar, se levantou.


Não fui capaz de dizer mais nada. Apenas o observei desaparecer nas trevas da noite. Fiquei estático por algum tempo, que não posso precisar. E só então tomei coragem para arriscar alguns acordes.


Acho que amanhecia quando coloquei o violão nas costas e deixei a encruzilhada. Algumas pessoas passaram por mim, quando seguia pela estrada, que me levaria ao norte. Lançavam olhares para mim, como quem olha para um pobre diabo. Mal sabiam a verdade...

Numinoso

Anoitecia, quando o mestre bateu à porta do mercador.   — Sou um velho monge, amigo da sabedoria. Venho de uma longa jornada rumo à minha mo...