quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Entre Ébrios e Blues (Jook Joint)

 

 
Robert Crumb


Lembro-me que era uma construção rústica, feita de madeira. Um lugar onde as pessoas se amontoavam para fumar, beber e ouvir o blues. Havia conversas ruidosas e ébrios desgraçados, assim como mulheres faceiras, cujas curvas atraíam olhares e confusões. A bebida servida era o hootch, um destilado clandestino feito de milho, servido em canecas toscas. Horrível, mas uma boa opção para aqueles tempos da lei.

Ficava às margens de uma estrada lamacenta, onde, não raro, o Rio Yazoo lançava suas águas com alguma rebeldia. Era um lugar agitado, algumas pessoas saiam de lá com a cabeça rachada, literalmente. Mas diziam ser o melhor bar do Delta, para se ouvir aquela música e beber alguma coisa destilada.

Ele subiu no pequeno palco, com o velho violão. Era um homem do blues, sobre o qual não se sabia muito. Chamavam-no simplesmente de “Relâmpago”, pois diziam que suas mãos eram rápidas. Trajava um terno garboso, mas barato e um chapéu preto, cuja aba lhe emprestava alguma aura misteriosa. Fumava copiosamente.

Algum silêncio se fez, quando ele deitou o violão no colo. Apagou o cigarro e sorriu, ajeitando a aba do chapéu. Suas mãos, então, começaram a dançar com desenvoltura pelo instrumento. Alguns acordes soaram, sujos. Lascivos como as curvas do violão.

Sua voz ganhou vida. Uma voz enigmática, ponteada por falsetes sensuais e gritos guturais. Lembro-me que era uma música que falava sobre uma mulher que mais se parecia com o capeta. Aquele foi apenas o primeiro de muitos outros blues.

A noite avançava, sorrateira. As pessoas se sacudiam, com rebuliço. Algumas gritavam obscenidades, bêbadas ou não. Mulheres ensaiavam danças, fulminadas por olhares libertinos.

Hipnotizado, sentia-me levado pelos versos e acordes daquelas músicas malditas. Porém, era sagrado, o caminho que minha alma percorria pelas vias tortas daqueles blues.

Passava das tantas da madrugada, quando ele parou de tocar. E desapareceu entre as pessoas. Nunca mais ouviria falar dele, mas jamais esqueceria aquela música.

sábado, 11 de setembro de 2021

Algo Sobre Blues



O relógio avançava e uma luz intrusa adentrava o quarto, sorrateira, pela janela aberta. Meus olhos cansados, fixos no teto. Era madrugada e uma solidão insólita preenchia todo o vazio daquele quarto. Vencido pela insônia, sentei-me na cama, sobre um lençol amarrotado, quente e úmido de suor. Olhei pela janela e a violenta cidade estava à vista. Observei-a por instantes, com certa indiferença.

Ao lado da cama, o violão surrado. À meia luz, contemplei-o. Inevitavelmente, o violão, ao meu alcance. “Que diabos!”. Estendi uma mão e, segurando o braço do velho instrumento, senti suas cordas frias, de aço. Meus dedos as afagaram como se passeassem pelo corpo de uma mulher. Sem resistir, puxei-o para junto de meu peito.

Lembro-me que havia um velho LP do B.B. King em qualquer canto daquele quarto. Além disso, um misto de sentimentos, indecifráveis. Naturalmente, comecei minha odisseia pelos calabouços de minha alma.

A mente me ditava alguns acordes. “Em algum quarto escuro, ela deve estar. Entre vinhos e rosas Inebriada e feliz...”, esse foi um dos muitos pensamentos que me vieram, desconexos. Quando dei por mim, toda aquela solidão ganhou forma, palpável, audível. Um blues, cujas notas ecoaram pelo quarto e saíram pela janela, ganhando a noite. Ganhando o mundo.

Lá fora, a cidade, violenta. Não me é possível especificar o alcance daquela maldita canção. Lembro-me somente da luz intrusa adentrando pela janela. Uma luz pálida, feia. E minha voz, acompanhada por aqueles acordes profanos, ressoando pelos quatro cantos daquela noite. Sobretudo, pelos quatro cantos da minha alma.




Numinoso

Anoitecia, quando o mestre bateu à porta do mercador.   — Sou um velho monge, amigo da sabedoria. Venho de uma longa jornada rumo à minha mo...