segunda-feira, 26 de junho de 2023

Numinoso


Anoitecia, quando o mestre bateu à porta do mercador.
 
— Sou um velho monge, amigo da sabedoria. Venho de uma longa jornada rumo à minha morada. Trago em meu encalço, a fome e o frio. 
 
Caridoso e adepto aos bons costumes, o mercador lhe ofereceu comida e hospitalidade por aquela noite. O mestre foi recebido com cortesia pela família de seu anfitrião e lhe foi oferecido um lugar junto à mesa onde ceavam. Após a ceia, o mercador declamou alguns versos da Grande Obra, o que foi benquisto por todos.
 
Pela manhã, quando da partida do Mestre, o mercador ordenou aos seus filhos que preparassem um alforje contendo pães e frutas secas.
 
— Para ajudar na sua jornada. — disse, entregando o alforje ao mestre.
 
— Você tem um coração de ouro! — o mestre apertou sua mão — No momento, não há muito mais do que meu agradecimento que possa lhe oferecer. No entanto, convido-o a vir até minha humilde morada, como forma de retribuir sua generosidade.
 
— Será um prazer!
 
— Da minha casa, podemos contemplar uma adorável vista, o que muito me inspira a meditar e lidar com meus pensamentos!
 
— Ah, a beleza da Grande Obra! — foi dizendo o mercador — O Grande Autor é sábio em suas criações!
 
— O Grande Autor? — o mestre sorriu — Onde você enxerga indícios dos pincéis de um artista, eu vejo um belo mistério.
 
— Então você é incrédulo? — perguntou um tanto surpreso o mercador.
 
— Incrédulo?! Não sei se essa seria a melhor definição. Conheço as recomendações que estão expostas no Livro Sagrado e também várias outras canções atribuídas ao Grande Autor. Aliás, em minhas andanças pelo mundo conheci outros nomes para designar aquele que conhecemos como o Grande Autor.
 
“Eu não entendo a existência do Grande Autor como um fato e nem a vida eterna como certa. Admito que a minha experiência com o sagrado não é a das escrituras, nem a dos teístas. Eu diria que é inominável e belamente inexplicável.”
 
— Gostaria de entender melhor essa experiência, mestre. Sou um homem de fé e procuro seguir as recomendações do Bom Livro. Admito, porém, que há muito que não encontrei ainda em nenhum templo, mesmo nos mais belos e suntuosos.
 
— Venha até minha casa! Talvez eu possa lhe mostrar o que não há nos templos! — o Mestre disse.
 
— Será uma honra ser recebido em sua morada!
 
O mestre partiu e, no mês seguinte, o mercador iniciou a viagem para visitá-lo. Durante alguns dias, atravessou rios, cruzou vales e conheceu cidades, até que finalmente encontrou o vilarejo que procurava. Soube então que o mestre vivia no alto de uma colina, nas imediações.

Sem delongas, iniciou a subida da colina indicada e, após algumas horas de caminhada, chegou ao topo, de onde pôde vislumbrar uma bela visão. Dali, podia ver cidades, rios, vales e até mesmo o mar, que estava a quilômetros de distância.
 
Apreciou aquela paisagem por algum tempo e só então vislumbrou um casebre, ao lado da qual, havia um banco onde estava sentado um homem, já com certa idade. O mercador logo reconheceu o mestre e este, com cordialidade, fez um sinal para que se aproximasse.
 
 O mercador cumprimentou-o com reverência e o mestre pediu que se sentasse ao seu lado.
 
— Por favor, fale-me sobre a sua experiência com o sagrado. — foi dizendo o mercador após uma conversa sobre algumas amenidades.
 
— É simples, caro amigo, e também complexo. — o mestre respondeu imediatamente, apontando a paisagem à sua frente — Apreciando o mundo à sua volta, talvez você queira entendê-lo e explicá-lo segundo as escrituras sagradas. Eu, por outro lado, não tento entender o mundo que me cerca, como uma obra caprichosa de um autor sábio. Onde você procura respostas, meu amigo, eu fico com a dúvida.

“Existir é uma experiência única e cada um a vive a seu modo. E, em alguns momentos, nós somos capazes de vivenciar isso de forma sagrada, transcendental. Eu diria além das percepções dos nossos sentidos. Você pode experimentar esse estado quando ouve os cânticos das sagradas escrituras ou quando aprecia essa bela paisagem ou uma noite estrelada. É o que os antigos chamavam de numinoso. Eu me proponho a estar aqui e agora e, admito a minha incapacidade de compreender tudo que me cerca. Essa é uma experiência sagrada."
 
— Então é isso… — o mercador lançou um olhar na direção da paisagem — Vejo cidades, rios, vales e, ao longe, o mar. Vejo isso como indícios de uma obra perfeita, concebida pelo Grande Autor, com maestria e benevolência.
 
— Essa é sua forma de experienciar o numinoso!
 
— Compreendo… — o mercador não podia deixar de sorrir.
 
O mestre retribuiu o sorriso com outro e, lançando um olhar para o horizonte, foi dizendo:
 
— Embora eu não seja crédulo como você, eu concebo sua crença com respeito, pois você me tratou com o mesmo respeito quando me recebeu em sua casa.
 
— E mesmo que não saiba, você traz os versos do Grande Autor em seu coração. — o mercador foi dizendo — Não é necessário compactuar com minha crença para perceber isso.
 
O mercador contemplou novamente a paisagem que o cercava e, naquele momento, começou a refletir sobre as palavras do mestre. Ao lado daquele homem sábio, entendeu algo sobre os versos da Grande Obra e o que não está escrito no Bom Livro.
 
— Venha, vamos tomar um bom chá, antes do crepúsculo! — o mestre lhe sorriu interrompendo suas reflexões — O céu está claro. Teremos uma bela oportunidade para admirar o pôr-do-sol e depois, a noite estrelada!

Um comentário:

  1. Sua postagem é um exemplo radiante de brilho! Perspicaz, bem articulada e verdadeiramente valiosa. Obrigado por compartilhar sua perspectiva.

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