quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Quando Poesia Chorou no Seio da Floresta Solidão


 
Havia uma floresta chamada Solidão. Uma floresta cravada em um reino chamado Alma. Em seu interior ressoava silêncio profundo, só interrompido por uivos agourentos de corvos que a habitavam. Cores cinzentas e marrons lhe emprestavam formas e contornos sombrios e de desesperança.

Solidão era floresta envelhecida, sob as intempéries das mãos sábias do Deus Tempo. As árvores eram velhas e, destas, os galhos eram secos e tortos. No chão, jaziam folhas mortas que se desprendiam constantemente das árvores, como se na floresta não houvesse outra estação senão o outono. 

Na maior parte do tempo, bruma densa pairava por toda sua extensão. Tal névoa, inevitavelmente, envolvia aqueles que se aventuravam por seus domínios. Solidão possuía o poder de adentrar sorrateiramente no âmago dos seres, levando aos seus corações grande tristeza. 

Ocasião ouve em que a ninfa Poesia se perdeu nessa floresta. A bela alma vagou até perceber que dificilmente conseguiria escapar dos domínios da Solidão. Tomada por angústia, a ninfa se sentou sobre um pequeno monte, recostada em um carvalho negro. 

Poesia, então, se entregou a sonoro pranto e, em pouco tempo, começaram a correr de seus olhos lágrimas em profusão. Estas foram tantas, que poça começou a se acumular em volta do monte em que se encontrava. E, após chorar por quase uma eternidade, formou-se um pequeno lago em volta da ninfa. E a água desse lago cristalino se fez doce. 

A partir de então, um espelho de águas límpidas passou a existir no seio da tenebrosa floresta. E quando Poesia despejou de seus olhos sua última lágrima, já não era uma ninfa e sim uma bela flor de aromas suaves e grande leveza, fixada no centro do lago, sobre uma ilhota e sob a sombra de um solitário carvalho negro. 

O lago recebeu do deus Tempo o sagrado nome de Acalanto e a flor levou centelha de paz à floresta. Então passou a haver redenção em meio aos dissabores da Floresta Solidão, ainda que Acalanto estivesse perdido no mais profundo rincão de seu interior.

Anderson Lobo
(sonhador sempre)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Feno (cada um colhe apenas o que pode)

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O Carro de Feno - Hieronymus Bosch


I

Ciclo, loucura
Absurdo e Samsara.
Dança, alimento,
Armadilha e amarra.

Objeto e fetiche,
Fortuna, quinhão.
Desejo e ouro.
Incerteza, ilusão.

Feno e metal,

Status e fama.
Clero e nobreza.
Ocaso e lama.

II

O carro passa,
cada um colhe apenas o que pode.
[Desvairados e iluminados observam a correria.
Eles sorriem.]
 

Anderson Lobo
(aprendiz de domador de palavras)

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A Camisa Alvinegra





Bem-aventurados os que não entendem nem querem entender de futebol, pois deles é o reino da tranquilidade. Carlos Drummond de Andrade



Ele chegou pelas tantas, depois da meia-noite. Ela estava na cama, ainda acordada, lendo um livro.

— Você soube, né?!

Ela apenas balançou a cabeça em sinal afirmativo, enquanto fechava o livro.

— Passava dos quarenta do segundo tempo... Estávamos vencendo... Mas tomamos dois gols, seguidos. Dá para acreditar?
            
— Ouvi alguns gritos, fogos... — um leve cheiro de álcool lhe veio ao nariz — Bebeu?

— Um pouco...


— Um pouco?


— Tínhamos que chorar nossas mágoas. Você sabe... estávamos com as mãos no caneco, mas levamos dois gols em cinco minutos!
            
Ela se sentou na cama e ele se manteve em pé, onde estava. Ele trazia uma expressão de amargura e ela, de compaixão. Ela, de camisola branca e ele usando a camisa alvinegra, suada.
            
— Íamos finalmente ser campeões, estávamos muito perto. — entre um longo suspiro — Ninguém na arquibancada acreditou quando fizeram o segundo gol, um cochilo da zaga...
            
— Não devia sofrer tanto por isso!
            
— Você não entende, não é?!
            
— Não, eu não entendo o porquê de tanta angústia. É apenas futebol!
            
Ele não lhe deu atenção. Continuou estático, e como em um monólogo:
            
— Esse ano as coisas pareciam diferentes. O time estava entrosado, uma ótima campanha, a torcida correspondendo... Mas foram necessários apenas cinco minutos! Dois gols no finalzinho da partida? Isso é demais para meu coração alvinegro!
            
Ele não conteve as lágrimas.
            
— E você me diz que é apenas futebol? — conseguiu dizer.
            
Sentindo-se algo culpada, ela se levantou e, o abraçando:
            
— Venha, vamos dormir.
            
Aos prantos, feito menino, ele se entregou àquele abraço quente e afundou a cabeça no ombro que lhe era oferecido. Com a voz engasgada:
            
— Você tem razão... — Eu não devia sofrer tanto por isso. Temos coisas mais importantes com o que nos preocupar... mas estivemos tão perto de conquistar o título! Acho que nunca teremos outra chance!
            
— Não diga isso! — ela lhe afagava as costas com carinho — Quem sabe no ano que vem?
            
— O que?! — levantou a cabeça e repeliu o abraço, com alguma agitação — Ano que vem? Isso termina aqui!
            
Foi em um relance, que ele tirou a camisa, com alguma rudeza, como se estivesse se livrando de uma camisa de força.  Com as mãos, tentou amassá-la, como se fosse papel, e a jogou, com força, no chão.
            
— Nunca mais uso essa camisa! — bradou — Nunca mais uso nenhuma camisa alvinegra! Chega de sofrimento!
            
— E você consegue?! — ela arriscou.
            
— Claro! Essa camisa vai para o lixo!
            
A camisa alvinegra jazia, algo triste, repousada, na cerâmica fria.
           
 — Você não precisa fazer isso!
            
Ele não lhe deu ouvidos, foi até a cozinha e voltou com um saco preto.
            
— Isso vai para o lixo! — ele pegou a pobre camisa, e a enfiou no saco.
            
Mesmo discordando daquele ato, ela não tentou o impedir.

— Tem certeza? — apenas perguntou — Se bem me lembro, você pagou caro por ela!
            
Ele não respondeu, levou o saco para fora de casa e o depositou na lixeira da calçada.
            
— Não devia sair sem camisa. A noite está fria. — ela disse assim que ele retornou.

— Agora, preciso de um bom banho. — não dando atenção ao comentário.
            
— Amanhã, o lixeiro vai passar cedo!

— Tanto melhor!
            
Deitou-se após o banho. Ela cochilava quando ele lhe beijou o pescoço e lhe deu boa noite.
           
            

A manhã já havia chegado, quando ele acordou. Lembrou-se imediatamente da noite passada e uma lembrança fez com que se sentisse especialmente mal. Levantou-se em um pulo, e, de cueca e descalço, saiu de casa às pressas. Deitada, ela apenas esperou que ele retornasse.
            
— O lixeiro passou cedo... — disse, de maneira lúgubre, quando retornou.
            
— Está em cima da mesa, na dispensa. — ela, com voz de sono.
            
Não foi preciso que ela dissesse mais nada, ele foi até a dispensa. Retornou segurando a camisa alvinegra, amarrotada e marcada de suor. Não podia esconder uma expressão de alívio.
            
— Eu te amo, Júlia.
            
Ela apenas sorriu.

Anderson Lobo
(aprendiz de domador de palavras)

quinta-feira, 26 de julho de 2012

cantadores


 arte: Malu

à noite,

cantadores se reúnem
e embriagam os corações,
com poesia e canção.
pelos bares,
cantadores
lapidam sons,
empunhando com gosto,
canto de cigarra e violão.
trazem consigo,
alma e nada mais.
pois a arte dos cantadores,
ofício de alcançar estrelas
sem retirar os pés do chão,
é matéria dos trovadores
e da mesma grandeza
do sublime ofício dos sonhadores.

Anderson Lobo
(aprendiz de sonhador)

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Mestre Josué e o Canoeiro




Mestre Josué meditava às margens do Rio da Tranquilidade, cujas águas mansas nascidas no seio das Montanhas Nevadas, desciam em profusão por planície verdejante. Envolto em paz, contemplava o céu quando canoeiro, que subia o rio, lhe chamou a atenção.

— Mestre, dizem que és o arauto de boas novas. — canoeiro sorria.

— Saudações, amigo! — mestre Josué disse amistosamente, retribuindo o sorriso — Dizem muito a meu respeito...

— Ouvi dizer que falas sobre o caminho. — canoeiro calmamente manejava o remo pelas correntezas do rio.

— O caminho? — Josué sorriu — Nobre homem, falo sobre um caminho, dentre tantos!

— Leva, então, tua fé aos homens. — canoeiro se distanciava — Sabedoria a teus discípulos, mestre!

O canoeiro guiava sua embarcação pelas águas do Rio da Tranquilidade e o mestre contemplava o calmo movimento da canoa, com a serenidade de quem sente paz.



Anderson Lobo

(sonhador sempre)

Numinoso

Anoitecia, quando o mestre bateu à porta do mercador.   — Sou um velho monge, amigo da sabedoria. Venho de uma longa jornada rumo à minha mo...