Bem-aventurados os que não entendem nem querem entender de futebol, pois deles é o reino da tranquilidade. Carlos Drummond de Andrade
Ele chegou
pelas tantas, depois da meia-noite. Ela estava na cama, ainda acordada, lendo
um livro.
— Você soube, né?!
Ela apenas balançou a cabeça em sinal afirmativo, enquanto fechava o livro.
— Passava dos quarenta do segundo tempo... Estávamos vencendo... Mas tomamos dois gols, seguidos. Dá para acreditar?
— Ouvi alguns gritos, fogos... — um leve cheiro de álcool lhe veio ao nariz — Bebeu?
— Um pouco...
— Um pouco?
— Tínhamos
que chorar nossas mágoas. Você sabe... estávamos com as mãos no caneco, mas levamos
dois gols em cinco minutos!
Ela se sentou na cama e ele se manteve em pé, onde estava. Ele trazia uma expressão de amargura e ela, de compaixão. Ela, de camisola branca e ele usando a camisa alvinegra, suada.
— Íamos finalmente ser campeões, estávamos muito perto. — entre um longo suspiro — Ninguém na arquibancada acreditou quando fizeram o segundo gol, um cochilo da zaga...
— Não devia sofrer tanto por isso!
— Você não entende, não é?!
— Não, eu não entendo o porquê de tanta angústia. É apenas futebol!
Ele não lhe deu atenção. Continuou estático, e como em um monólogo:
— Esse ano as coisas pareciam diferentes. O time estava entrosado, uma ótima campanha, a torcida correspondendo... Mas foram necessários apenas cinco minutos! Dois gols no finalzinho da partida? Isso é demais para meu coração alvinegro!
Ele não conteve as lágrimas.
— E você me diz que é apenas futebol? — conseguiu dizer.
Sentindo-se algo culpada, ela se levantou e, o abraçando:
— Venha, vamos dormir.
Aos prantos, feito menino, ele se entregou àquele abraço quente e afundou a cabeça no ombro que lhe era oferecido. Com a voz engasgada:
— Você tem razão... — Eu não devia sofrer tanto por isso. Temos coisas mais importantes com o que nos preocupar... mas estivemos tão perto de conquistar o título! Acho que nunca teremos outra chance!
— Não diga isso! — ela lhe afagava as costas com carinho — Quem sabe no ano que vem?
— O que?! — levantou a cabeça e repeliu o abraço, com alguma agitação — Ano que vem? Isso termina aqui!
Foi em um relance, que ele tirou a camisa, com alguma rudeza, como se estivesse se livrando de uma camisa de força. Com as mãos, tentou amassá-la, como se fosse papel, e a jogou, com força, no chão.
— Nunca mais uso essa camisa! — bradou — Nunca mais uso nenhuma camisa alvinegra! Chega de sofrimento!
— E você consegue?! — ela arriscou.
— Claro! Essa camisa vai para o lixo!
A camisa alvinegra jazia, algo triste, repousada, na cerâmica fria.
— Você não precisa fazer isso!
Ele não lhe deu ouvidos, foi até a cozinha e voltou com um saco preto.
— Isso vai para o lixo! — ele pegou a pobre camisa, e a enfiou no saco.
Mesmo discordando daquele ato, ela não tentou o impedir.
— Tem certeza? — apenas perguntou — Se bem me lembro, você pagou caro por ela!
Ele não respondeu, levou o saco para fora de casa e o depositou na lixeira da calçada.
— Não devia sair sem camisa. A noite está fria. — ela disse assim que ele retornou.
— Agora, preciso de um bom banho. — não dando atenção ao comentário.
— Amanhã, o lixeiro vai passar cedo!
— Tanto melhor!
Deitou-se após o banho. Ela cochilava quando ele lhe beijou o pescoço e lhe deu boa noite.
A manhã já havia chegado, quando ele acordou. Lembrou-se imediatamente da noite passada e uma lembrança fez com que se sentisse especialmente mal. Levantou-se em um pulo, e, de cueca e descalço, saiu de casa às pressas. Deitada, ela apenas esperou que ele retornasse.
— O lixeiro passou cedo... — disse, de maneira lúgubre, quando retornou.
— Está em cima da mesa, na dispensa. — ela, com voz de sono.
Não foi preciso que ela dissesse mais nada, ele foi até a dispensa. Retornou segurando a camisa alvinegra, amarrotada e marcada de suor. Não podia esconder uma expressão de alívio.
— Eu te amo, Júlia.
Ela apenas sorriu.
Anderson Lobo
(aprendiz de domador de palavras)
Excelente...
ResponderExcluirDemais cara, o sentimento é esse mesmo! E quem nunca quis jogar fora a camisa?
ResponderExcluirAdorei! Descreve, nesse cômico relato, uma característica essencial dos relacionamentos: empatia!
ResponderExcluirCara muito bom, parabéns!
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